A Fé nas Bocas do Mundo
- Luís G. Rodrigues
- 14 de out. de 2022
- 4 min de leitura
A Igreja Católica está nas bocas do mundo. Dezenas e dezenas de notícias chegam aos nossos telemóveis, às nossas televisões, aos jornais em papel (há quem os compre, juventude!) para nos informarem de algo que, apesar de não ser propriamente novidade, escandaliza e entristece qualquer cidadão com o mínimo de decência e empatia: alegações e acusações de abuso sexual por parte de membros da Igreja a menores de idade.
Em Portugal, país onde, de acordo com um estudo de 2018 conduzido pelo Pew Research Center, 28% dos portugueses acredita que Deus fala com eles todos os dias (uma percentagem que nos deixa no topo do ranking europeu nesta matéria) e onde 35% da população diz ser católica praticante e 48% católica não praticante, as denúncias que vieram a público estão a causar celeuma na praça pública1.
Até agora, foram denunciados 424 casos de abuso à Comissão Independente para o Estudo de Abusos de Menores na Igreja. Um número que foi desvalorizado pelo Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, ao dizer: “Haver 400 casos não me parece um número particularmente elevado”2.
Para que os mais fervorosos defensores de Marcelo Rebelo de Sousa não me acusem de descontextualizar, aqui vai a frase completa proferida pelo atual Presidente da República reeleito em 2021 com 60,7%, ou seja, com 2.531.692 votos: “Não me surpreende. Não há limite de tempo para estas queixas, há queixas que vêm de pessoas de 90 ou 80 anos e que fazem denúncias relativamente ao que sofreram há 60 ou 70 anos. Portanto, significa que estamos perante um universo de pessoas que se relacionam com a igreja católica [na ordem] de milhões de jovens ou muitas centenas de milhares de jovens. Haver 400 casos não me parece que seja particularmente elevado porque noutros países com horizontes mais pequenos houve milhares de casos”3.
Para o Presidente da República, a Igreja Católica portuguesa é menos má do que as outras porque violentou menos crianças comparativamente a outros países. Como bom leitor de Santo Agostinho que o fervoroso devoto católico Marcelo Rebelo de Sousa deve ser, deve ter aprendido com o doutor da Igreja quando este, para relativizar o mal e argumentar a favor da fé cristã (numa altura crítica de combate entre cristianismo e paganismo), menosprezou os extermínios em massa, massacres e violações que se deram em Roma a Agosto de 410, comparando a situação aos casos de Sodoma e Gomorra. Como ambas estas cidades arderam totalmente (ninguém, nem nada sobreviveu), Deus tinha sido, aos olhos de Agostinho, benévolo para o povo romano que tinha, portanto, sofrido menos: a lógica do pecado-punição (Silva Rosa 2019: 40-41). Este comparar de males, esta relatividade forçada em defesa de uma crença é, coloquemos em palavras claras, abjeta. O sofrimento não é quantificável; não é um número. Quando alguém sofre, não há religião que possa medir esse sofrimento.
Marcelo fez exatamente o mesmo exercício: “bem, como no nosso país temos 400 casos e noutros países há mais, nós não somos assim tão maus”. Espero que os mais de 2 milhões de portugueses que votaram nele se sintam representados e bem consigo mesmos. Espero também que o primeiro-ministro, António Costa, que não perdeu tempo e defendeu, de imediato, Marcelo, dizendo que as palavras do Presidente tinham sido propositadamente mal interpretadas, se sinta confortável com o lado que está a tomar.
Paralelamente a tudo isto, o resto da Europa é também tomada de assalto pelos comportamentos nada católicos dos membros da Igreja Católica. Alguns exemplos:
Num estudo de 2018, a Igreja Espanhola parece ter sido culpada de 1,246 casos de abuso4;
A Diocese de Munique enfrenta 497 acusações5;
A Igreja Francesa, destacando-se da concorrência entre pares, é acusada de abusar mais de 200,000 menores6.
Uma análise mais superficial destes casos poderia resultar numa ilação apressada: a fé dos europeus está a ser desafiada. Não creio. Ou pelo menos espero que não.
Enquanto ateu que convive diariamente com cristãos e católicos, vejo que a fé parte de dentro; vejo que a fé é algo pessoal. Enquanto ateu que sempre conviveu com a religião cristã desde pequeno, fascina-me ver a beleza da crença em qualquer lado: na Igreja mais adornada ou num quarto escuro e silencioso. A coisa mais bela no ato de rezar não é Igreja, são os olhos fechados e as mãos entrelaçadas; é acreditar que naquele momento o Ser mais poderoso de sempre está a ouvir como se não tivesse mais nada que fazer.
Se há coisa que os católicos devem fazer perante esta situação indigna é expressarem-se. Ponham em prática o que o vosso Deus vos ensina.
Os cidadãos do mundo e os cidadãos europeus agradecem.
1 Chaíça, I. (2018). Portugueses são os europeus que mais acreditam que Deus fala com eles todos os dias. PÚBLICO. Obtido 12 de outubro de 2022, de https://www.publico.pt/2018/05/30/sociedade/noticia/portugueses-sao-os-europeus-que-mais-acreditam-que-deus-fala-com-eles-todos-os-dias-1832751
2 Carmo, D. (2022). Marcelo sobre abusos na Igreja: “Haver 400 casos não me parece que seja particularmente elevado”. PÚBLICO. Obtido 12 de outubro de 2022, de https://www.publico.pt/2022/10/11/sociedade/noticia/marcelo-abusos-igreja-haver-400-casos-nao-parece-particularmente-elevado-2023659
3 Ibid.
4 AFP. (2022). Spain approves investigation into sexual abuse within Catholic Church. Euronews. https://www.euronews.com/2022/03/10/spanish-mps-approve-investigation-into-sexual-abuse-within-catholic-church
5 Welle, D. (2022). Ex-Pope Benedict XVI failed to act in child abuse cases—Report | DW | 20.01.2022. DW.COM. Obtido 12 de outubro de 2022, de https://www.dw.com/en/ex-pope-benedict-xvi-failed-to-act-in-child-abuse-cases-report/a-60494714
6 Breeden, A. (2021). Over 200,000 Minors Abused by Clergy in France Since 1950, Report Estimates. The New York Times. https://www.nytimes.com/2021/10/05/world/europe/france-catholic-church-abuse.html
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