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1A: As deambulações de uma efeméride

A 24 de fevereiro de 2022, João Adelino Faria abriu o telejornal com palavras que se iriam repetir ad nauseam até aos dias de hoje: “Está em marcha o maior ataque na Europa desde a Segunda Guerra Mundial (...)”. Cumpre-se um ano desde a escalada do conflito em território ucraniano. Sim, escalada do conflito. Esta efeméride não marca o início da guerra da Rússia com a Ucrânia; assinala, sim, o gigantesco escalar de uma invasão que tivera início a 28 de fevereiro de 2014, na península da Crimeia. Em 2019, Teresa de Sousa escreveu no Público que, na madrugada de 27 para 28 de Fevereiro de 2014, foram tomados de assalto, por soldados russos, os edifícios do parlamento e do governo da Crimeia; conclui, dizendo: “Para a Ucrânia o futuro continua em aberto. Para a Europa, nada nunca mais voltou a ser como antes.”. É extremamente difícil tentar convencer os leitores do seu contrário.

Neste dia, há um ano, Putin faz um comunicado intimamente dirigido aos seus compatriotas, onde expõe as razões que levam o seu regime a realizar uma “operação militar especial”. Nas suas palavras, “o objectivo desta operação é proteger pessoas que, há oito anos, enfrentam humilhações e genocídios perpretados pelo regime de Kiev. Para este fim, buscaremos desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia (...)”. De acordo com aquela que é a opinião de alguns analistas de política internacional, nomeadamente, do professor, cronista e comentador Miguel Monjardino, a estratégia de comunicação de Vladimir Putin, neste ponto, passa por uma tentativa expressa de aludir à luta do povo russo contra a Alemanha nazi na Segunda Guerra Mundial. De um modo geral, Putin recorre a diversas formas de persuasão discursiva, com o intuito de transmitir e convencer a sua população do conteúdo da sua mensagem, mas também para oficializar uma narrativa não assumidamente confrontacional com os países do Ocidente. Para o professor açoriano, o real objectivo inicial da invasão era a da realização de uma mudança de regime em Kyiv; mudança essa imposta militarmente para assegurar o fim da crescente europeização e democratização da Ucrânia. O Kremlin, com a sua enorme incapacidade em aceitar consequências geopolíticas do alargamento da OTAN na Europa Central e de Leste, conseguiu recorrer a elementos da política externa americana, e de uma respectiva descredibilização internacional, para suportar a sua justificação de uma incursão em território ucraniano. A descredibilização internacional é derivada do histórico de políticas externas norte-americanas, especificamente, a invasão do Iraque e as manobras de foreign policy protagonizadas pelo antigo secretário de Estado, Henry Kissinger. O já mencionado autor, Miguel Monjardino, escreveu no seu livro Por Onde Irá a História que “do ponto de vista de Moscovo, Washington e as capitais europeias abusaram do seu poder ao estender o guarda-chuva político-militar aos países que faziam parte das repúblicas pertencentes à URSS.”. Mas não mencionei Kissinger por acaso. Na sua obra panfletária, publicada em 2001, apelidada por muitos como sendo “incendiária”, o já falecido escritor Christopher Hitchens tomou para si o papel de advogado de acusação, apresentando uma investigação que pretendia acusar o antigo diplomata americano de ser o responsável por crimes de guerra na Indochina, pela Campanha do Camboja, entre outros acontecimentos que resultaram num grande número de mortos. Hitchens, num dos seus capítulos finais, enumera quatro grupos principais, que se interligam, de desenvolvimentos nos direitos nacional e internacional desde a segunda grande guerra, sendo que aqui enunciarei apenas três (os que julgo possuirem maior relevância para o tema aqui discutido): a Lei Internacional dos Direitos Humanos, inspirada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos; a Lei dos Conflitos Armados, que define a protecção dos civis em situações de confronto armado, exigindo aos Estados que assegurem os valores humanitários numa intervenção militar; e, por fim, o Direito Penal Internacional, que codifica e define num enquadramento jurídico os crimes de guerra e genocídio. É a esperança de muitos, que ao contrário da escapatória rápida e cobarde de Adolf Hitler, Putin venha um dia a sofrer as consequências das suas decisões, que seja julgado e condenado, assim como foram inúmeros representantes da Alemanha Nazi nos julgamentos de Nuremberga (1945-1946).

Com tudo isto que já referi, falhou-me o tecer de considerações sobre a natureza deste conflito. Muitos são aqueles que se têm predisposto a tentar definir um título que melhor classifique estas intermináveis páginas que caracterizam este volume prolongado do conflito armado. Com maior ou menor repetição, com maior ou menor originalidade e complexidade linguística, muitos repetem-se entre si na utilização de chavões; de clichés conceptuais e ideológicos. Devo dizer, no entanto, que, apesar do termo cliché possuir uma carga conotativamente negativa, por muito simplista e repetitivo possa ser, não implica à partida o desvirtuamento em relação ao respeito pela verdade. Com isto em mente, atrevo-me a defender a ideia de que estamos a assistir ao clássico duelo entre o liberalismo democrático e o iliberalismo autocrático; sendo que, ao invés do tradicional plano de fundo oitocentista de casas em madeira e paisagens desérticas a comporem o quadro descriptivo típico de dois pistoleiros que se confrontam, temos o mundo inteiro, com a sua multiplicidade e diversidade paisagística, cultural, política e económica, numa luta pela sobrevivência dos seus valores, e princípios de cooperação e solidariedade.

Ouvindo e lendo alguns comentários ou opiniões, foi possível constatar que, pese embora uma rápida mudança no registo opinativo posterior, não poucos foram aqueles que se mostraram surpreendidos perante a ascensão dos níveis de tensão. Colocando a questão de forma simplificada e num tom algo juvenil: “quem é que foi apanhado de surpresa??”. Bem, perante esta questão poderíamos responder que, certamente, muitos não terão sido. Em 2014, numa entrevista concedida ao programa HARDtalk da BBC, o então senador republicano John McCain proferiu palavras que hoje muitos apelidam de “proféticas”, quando na realidade se trataram apenas de projecções proferidas por um homem experiente e astuto na observação de quezílias internacionais. McCain asseverou que Putin tinha o objectivo de separar a região leste da Ucrânia do resto do país e, “talvez, uma ponte terrestre até à Crimeia”. Quando a entrevistadora Zeinab Badawi questiona McCain sobre o porquê de este não se surpreender com a inacção dos países europeus face à ofensiva russa na Crimeia, o falecido senador responde com sagacidade e enorme firmeza que os europeus “estão dependentes da energia russa”. Através do petróleo, gás natural e carvão, a Putinocracia – arriscando aqui o “furto” deste termo cunhado, creio eu, pelo analista de política internacional, Bernardo Pires de Lima – conseguia manipular os executivos europeus, transformando as leves sanções da época em meros instrumentos retóricos que tentavam transmitir a ideia de que algo estava realmente a ser feito, para pressionar a Rússia a retirar as suas tropas de território ucraniano e a solucionar o conflito. Isso não aconteceu. Enfim, era óbvio. Era óbvio menos na óptica daqueles que se mostraram incrédulos quando tropas russas usurparam e destruíram mais território pertencente à república da Ucrânia.

As expectativas iniciais eram as de que esta nova etapa da invasão fosse decisiva, e, acima de tudo, célere, de curtíssima duração – os mais pessimistas, muitos deles supostos realistas, postulavam uma duração inferior a uma semana. Porém, aquilo que a realidade estratégica militar russa aparentou demonstrar, foi que as suas expectativas de uma Ucrânia frágil e completamente isolada se provaram frustradas. Não só o actual presidente eleito em 2019 demonstrou características de liderança ímpares, como também a convergência entre os Estados-membros da UE e da OTAN surpreendeu um elevado número de especialistas dos países membros. Após aquele que aparentava ser o pior período da OTAN desde a sua formatura - com a anterior administração norte-americana a questionar um dos princípios fundamentais que caracterizam a aliança do Atlântico Norte, a cláusula de defesa colectiva (mais conhecida como Artigo 5º) -, a Aliança “ganhou nova vida”(assim tem sido entoado pelas mais diversas figuras dos mais diversos recantos do planeta). Como escreveu o historiador australiano Christopher Clark na sua obra The Sleepwalkers: How Europe Went to War In 1914, nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, chefes de Estado e diplomatas europeus caminhavam “sonambulamente” em direcção a uma guerra de enorme escala e duração. Recorrendo a esta expressão curiosa escolhida por este historiador, e adaptando ao contexto actual, podemos, a meu ver, afirmar que os actuais líderes do dito “mundo livre” acordaram de um longo período de sonambulismo perante as acções do Império Russo. Perdão, da União Soviética! Peço novamente perdão. Da Federação Russa, assim é que é.

Recapitulando estas últimas ideias, podemos então perceber que numa sequência semelhante à do fim da Guerra Fria, com o maior esforço de cooperação internacional de sempre, a lógica da invasão russa surtiu um efeito agregador e transformador do paradigma do Ocidente. É possível evidenciar alguns exemplos claros desta mesma alteração da políticas externas. O governo do chanceler alemão Olaf Scholz acabou com décadas de contenção e desconfiança em relação a um maior investimento na estrutura militar do seu país, propondo a criação de um fundo especial de 100 bilhões de euros – com a aprovação do parlamento alemão. De forma convergente, tanto a Suécia como a Finlândia se aperceberam que esta seria uma oportunidade essencial para garantir a segurança dos seus países, formalizando um pedido de adesão à OTAN. O Conselho Federal suíço, a entidade que governa e chefia o Estado suíço, a 28 de Fevereiro de 2022, decide adoptar o pacote de sanções imposto pela UE - tal como está publicado no seu site oficial. O regime “putinista” conseguiu inspirar o país que possui a neutralidade permanente como um princípio da política externa a impor sanções que levaram ao congelamento de activos do Presidente da Federação Russa, Vladimir Putin e do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov. Recorrendo a um último exemplo, a 28 de Fevereiro de 2022, a Reuters noticiava a decisão da Turquia em limitar o “trânsito de navios de guerra russos do Mediterrâneo ao Mar Negro.”. A notícia também descrevia que esta mudança na retórica dos responsáveis turcos levou à invocação da Convenção de Montreux de 1936 (tendo sido a então União Soviética uma das potências signatárias), um tratado que permite à Turquia limitar, ou bloquear por completo, a passagem de navios de guerra nos estreitos de Bósforo e Dardanelos. Todos estes exemplos que escolhi estão mencionados num artigo publicado na TIME a 28 de Fevereiro de 2022.

Ao contrário do que se passava no período de Leonid Kuchma, o segundo presidente ucraniano desde a desintegração da URSS, a Ucrânia de Zelensky é uma Ucrânia cuja visão já não está predominantemente turva sobre se “é a fronteira ocidental da Rússia com a Europa ou a fronteira oriental da Europa com a Rússia.” – assim escreveu o especialista em Relações Internacionais, Carlos Gaspar, no seu ensaio da FFMS, O Mundo de Amanhã: Geopolítica contemporânea. Essa dúvida existencial dissipou-se após a eleição do actual presidente ucraniano. A sua esmagadora victória e o resultado eleitoral do seu partido sustentam com enorme clareza esta posição. Agora, em plena agressão ao seu território, “O factor Zelensky”, como muitos classificam, tem sido uma peça fundamental na estratégia ucraniana para conseguir galvanizar o seu povo e o apoio internacional. A sua experiência na área do entretenimento e comunicação permitiu a Zelensky criar uma máquina sedutora que atraiu a convergência do Ocidente político. Contudo, esta atracção não se deve à velha história que definiu muitos clássicos literários da demoiselle en détresse. Au contraire, Zelensky avivou a velha história do Antigo Testamento, da luta de David contra Golias. A guerra que está a destruir a Ucrânia tem servido também para demonstrar a enormíssima coragem de um povo. Diria até que a resistência ucraniana faz lembrar um excerto do poema Ulysses de Alfred, Lord Tennyson: “(...) that which we are, we are;/ One equal temper of heroic hearts,/ Made weak by time and fate, but strong in will/ To strive, to seek, to find, and not to yield.”.

Parece-me claro que a derrota da Rússia (com o abandono de todo o território ucraniano de acordo com a sua disposição delineada em 1991) não será apenas uma victória para a Ucrânia. Será uma victória para o mundo inteiro, incluindo, de certo modo, para a Rússia, visto que “em nenhum caso a derrota face à Ucrânia põe em risco a sua existência [da Rússia]”, como bem escreveu José Pacheco Pereira numa crónica no Público. Pacheco Pereira assume-se como “beligerante e belicoso, sem consideração pela paz dos invasores”. Penso que os leitores que resistiram à dimensão exaustiva deste texto concordarão que, assim como este cronista, não queremos “viver numa Europa em que um Estado autocrático e imperial dita as regras de Vladivostok a Lisboa.”.

Termino com duas reflexões finais, sendo que a conclusão da primeira é de natureza sonhadora. O destino de autodeterminação do povo ucraniano deve ser defendido tal como o poeta oitocentista inglês William E. Henley escreveu no seu célebre poema Invictus (poema esse que serviu de enorme inspiração a Nelson Mandela): “It matters not how strait the gate,/ How charged with punishments the scroll,/ I am the master of my fate,/ I am the captain of my soul.”. A segunda reflexão, e final, embora por mim possa ser descrita, deixo-a nas palavras que Bernardo Pires de Lima apresentou aos seus leitores na reedição do seu livro Putinlândia: “Reerguer agora um continente mais democrático, seguro e próspero não implica apenas salvaguardarmos o que tantos continuam a dever a tão poucos, mas também tudo fazermos para travar a ascensão autoritária que mina, esmaga e massacra quem recusa ser subjugado.”.



António Mascarenhas Pescão

Estudos Europeus na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa




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