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1A: Há um ano em busca da paz

No Verão de 2005, num período em que ainda se comentava a série de protestos e de eventos políticos que ocorriam na Ucrânia desde Novembro de 2004, Putin não se revelou muito esperançoso relativamente à probabilidade de algo como a Revolução Laranja concretizar-se em espaço russo: “Julgo não haver motivo para esperarmos instabilidade”. De seguida, fez uma breve análise: “Os principais motivos que levaram à revolução na Ucrânia foram a pobreza e o desemprego, que se vieram juntar à já existente corrupção endémica. Não somos contrários às mudanças no espaço pós-soviético, mas queremos assegurar-nos de que essas mudanças não terminam em caos”. Quando Putin se refere a “instabilidade”, tem-se assumido que pretende dizer, na verdade, mudança democrática.

A 10 de Fevereiro de 2007, aquando do famoso Carnaval de Munique, o hotel de cinco estrelas fora estabelecido como palco das reuniões de alto nível da Conferência de Munique sobre Políticas de Segurança, que têm como objetivo a análise de assuntos estratégicos. Quem foi convidado a proferir o discurso da abertura foi o então (e atualmente) Presidente da Federação Russa Vladimir Putin. Foi um momento em que se esperava a definição das relações da Rússia com os Estados e o resto do mundo ocidental e Putin não escondeu a sua pretensão de ver as suas ideias e seus planos (mais ou menos vagos) influenciarem o rumo da Europa do Leste, na região dos Balcãs e da Ásia Central. Admitiu, portanto, que sentia que o Ocidente tinha, de forma unilateral e injusta, explorado a inquietação e os problemas dos herdeiros da antiga União Soviética, incluindo da Rússia, e recusado auxiliá-los nos momentos mais conturbados da sua história. Para além desta acusação de negligência, acusou o Ocidente de assegurar a todo o custo a hegemonia geopolítica em toda a Europa de Leste e na maior parte da Ásia Central. Assim, os russos, ao se depararem com a adesão à NATO no Báltico e a sul do território, no Usbequistão, se sentiam naturalmente cercados em sua própria casa.

Independentemente do que Putin poderá pensar, a Ucrânia tem sido, pelo menos desde o século XVII, um dos elementos principais da consideração de abrangência do domínio por parte dos governantes russos. Entre os dois países, duas visões contrastam-se: a Rússia vê a Ucrânia como uma parte integral do seu império, pelo que Putin deseja integrar o país vizinho da Rússia num domínio político tutelado pelo maior país do mundo; já a Ucrânia revela uma visão de si própria como única e independente da herança eslava oriental, assim como uma ambição de ser uma nação soberana com um sistema parlamentar minimamente funcional. Desde a queda da União Soviética que a trajetória da Rússia tem consistido na autocracia, na cleptocracia e na quase omnipresença do governo na sociedade e nos assuntos internos. A Ucrânia, por seu lado, e nunca deixando fora de consideração evidências de corrupção e episódios de violência causada por posições políticas discordantes, é, em situações de paz, uma democracia com cerca de três décadas e reveladora dos seus êxitos.

Há que ter cuidado nas analogias que alguns têm feito entre Putin (ou o putinismo) e o anterior império soviético. É verdade que nos devemos recordar de que Estaline preocupava-se, na década de 1930, com a aproximação da Ucrânia à Polónia, país que aderiria mais tarde ao Pacto de Varsóvia. Contudo, Putin chegou a denunciar o governo de Lenine por ter dado à Ucrânia um “sentido de estado”. O entendimento de Putin relativamente à partilha de eventos históricos e de ambições é considerada muito ambígua e, por vezes, mesmo como um produto de uma visão deturpada dos fatos. A fixação de Putin na Ucrânia deriva do facto de a ex-república soviética ser etnicamente eslava, à influência que a Igreja Ortodoxa continua a ter na sociedade civil ucraniana e por ter pertencido a extensões territoriais administradas pela Rússia no passado (Império Russo e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). Por isso, a independência e a autonomia ucranianas não fazem sentido para Putin, ou pelo menos assim o chefe de estado russo se deixa interpretar.

Podemos afirmar que Putin é um protótipo de um nacionalista russo: exalta o papel do povo russo no mundo; invoca a superioridade moral da Igreja Ortodoxa; justifica a presença da Rússia na Eurásia; trata a coletividade russa e o seu lugar no mundo como excecionais. Mas as discordâncias relativamente à incursão (silogismo que hoje é de utilização inapropriada) na Ucrânia decidida por Putin não se encontram presentes apenas na oposição mais ferrenha ao atual presidente da Rússia, tal como Alexi Nalvany, mas também no seu círculo mais próximo. Por exemplo, o secretário-geral ou chefe da Assembleia dos Oficiais Russos Leonid Ivashov publicou uma carta no site do grupo que chefia, declarando que Putin estava a prosseguir uma “política criminosa de provação de guerra” num contexto de ausência de “ameaças críticas” à Rússia. Mais detalhadamente, Ivashov pediu a Putin que abandonasse uma política (atualmente em curso) que colocaria “a Federação Russa sozinha contra as forças unidas do Ocidente” e que se “demitisse” enquando chefe de estado da Rússia. O conteúdo da carta contraria tudo o que Putin tem dito durante anos, chegando Ivashov a comunicar que as forças da NATO não constituíam, à altura, ameaças à Rússia enquanto estado e titular de interesses e que as armas nucleares ocidentais se encontravam sob controlo. Os efeitos mais imediatos de um ataque dirigido à Ucrânia seriam, segundo Ivashov, a fragilização da Rússia enquanto nação e estado e a transformação de russos e ucranianos em inimigos mortais. Num prazo maior, a Rússia seria colocada “na categoria de países que ameaçam a paz e a segurança internacional”, seria sujeita “às sanções mais pesadas”, perderia “o estatuto de estado independente”. Nos dois lados da guerra, o “modo de viver usual” e o “sistema vital de estados e povos” seriam violados e destruídos.

Logo após o início da guerra, maioria das previsões de Ivashov, senão mesmo todas, corresponderam ao que veio ser a realidade na Rússia, na Ucrânia e na Europa inteira. Logo nesse mês de Fevereiro de 2022, o chanceler alemão Olaf Scholz, numa clara inversão da tendência de preservação da paz a todo o custo promovida pelos sociais-democratas alemães, proferiu que o envio de armas à Ucrânia seria a única “resposta responsável à agressão de Putin”. Para além disso, comprometeu-se a 100 biliões de dólares adicionais em gastos na defesa, à entrega de navios à Ucrânia e ao fim do gasoduto Nord Stream 2. Antes da chegada de Março, uma equipa de veteranos das forças especiais britânicas e americanas, experientes em combate corpo-a-corpo e em contraterrorismo, aceitaram a oferta do Presidente Volodymyr Zelensky para se juntarem a uma nova unidade de combatentes estrangeiros ao lado da Ucrânia: a Legião Internacional da Defesa Territorial da Ucrânia. Na própria Ucrânia, muitos falantes de russo, que seriam supostamente os que mais rapidamente adeririam à mobilização dos invasores, têm ingressado em aulas com o fim de dominarem melhor as suas capacidades de utilização do idioma ucraniano. Assim, a invasão russa teve o mérito de mostrar que os mais céticos e os mais desconfiados relativamente ao comportamento do maior país do mundo na Europa do Leste conseguem unir-se diante de evidentes atrocidades.

À data a que chegámos, muito sobre aquilo que se temia relativamente às ambições da Rússia (a governada por Putin, claro) enquanto nostálgica relativamente ao passado imperial veio a confirmar-se. As principais são, diríamos nós, que a presença da Rússia na Ucrânia não é algo que vá acabar em pouco meses ou mesmo em poucos anos e que todos os esforços da Rússia em governar e a modelar o seu país vizinho segundo determinadas visões (nomeadamente putinistas e imperialistas) nunca deixarão os ucranianos ilesos. Putin, ao contrário do que afirmou em 2005, não parece aberto às “mudanças no espaço pós-soviético” mais previsíveis, aceitáveis e dignas no espaço soviético, buscando um “caos” imaginário onde quer que entenda que possa ser explicado com uma ou outra deturpação da história. Os ucranianos conhecem o direito que têm a seguir o caminho da “instabilidade”, isto é, do convívio saudável entre centro, esquerda e direita, à confortabilidade da sua sociedade civil e à defesa dos seus interesses nacionais, que durante décadas foram ameaçados e que estão a ser nitidamente minados desde há um ano. Putin, na verdade, irrita-se com todas as tentativas de o Ocidente contraria a hegemonia de um país revisionista e portador de planos que, a serem concretizados, beneficiarão muito poucos, ou mesmo ninguém.


Lourenço Ribeiro

Faculdade de Letras da Universidade do Porto




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