top of page

A Europa Perante Meloni

Em meados do mês, andamos quase a matar-nos uns aos outros por causa da vitória de forças conservadoras (e nacionalistas) na Suécia. Nas duas últimas semanas do mesmo mês (e talvez continuemos assim durante algum tempo), fizemos o mesmo quanto aos resultados das eleições num dos países-fundadores da Comunidade Económica Europeia (CEE), que veio mais tarde a dar origem à União Europeia. O que assustou uns e confortou outros foram as primeiras projeções das eleições legislativas em Itália, que deram vitória ao partido Irmãos de Itália (com uma votação entre os 22% e os 26)1. Para muitos, isso foi até mais importante do que a projeção segundo a qual a coligação de direita teria um resultado entre os 41% e os 45%2. Não havendo ainda uma data confirmada para a tomada de posse do novo governo italiano, a possibilidade de Georgia Meloni, líder do partido Irmãos de Itália, vir a ser a primeira mulher a assumir o cargo de primeira-ministra num contexto de coligação com o Força Itália (de Silvio Berlusconi) e com o Liga (de Matteo Salvini) não provoca um ambiente pacífico naqueles que se tentem envolver nos debates relacionados com a ciência política, as relações internacionais e o jornalismo político.


O Irmãos de Itália é actualmente o maior partido da direita italiana. A popularidade do partido deve-se a Giorgia Meloni, que não dispensa um modo frontal de comunicar, indispensável para alargar a incidência da apresentação das suas ideias, e ao seu estatuto de único partido de oposição ao governo de Mario Draghi3, o que libertou o partido de alguns compromissos com eventuais colaboradores políticos. Apesar de o Irmãos de Itália ser um sucedâneo do partido Aliança Nacional, que havia surgido por iniciativa de alguns antigos membros do Partido Nacional Fascista Italiano, a própria Meloni recusa qualquer associação com as ideias de Mussolini, que muito provavelmente nunca conseguiria tolerar muitas das ideias atuais do Irmãos de Itália relativamente à livre empresa e à livre iniciativa4, tão caras aos atuais movimentos conservadores inglês e americano. Isto tudo, aliado a um populismo considerado exacerbado de um dos futuros parceiro da coligação, Matteo Salvini, já precupa alguns que receiam a adição de mais um elemento ao conjunto de Estado-membros da UE “disruptivos”, ao qual pertencem a Hungria e a Polónia5.


Reduzir a personalidade de Giorgia Meloni à sua filiação no antigo Aliança Nacional pode ser um pouco daltónico. Contudo, a miopia é muito característica própria daqueles que não sabem distinguir um fascista de um conservador ou de um nacionalista. Infelizmente, muitos jornalistas não escapam a esta tendência, sendo que é saturante a regularidade com que muitos meios de comunicação abordam qualquer movimento político disruptivo (especialmente de direita) como “extremo” ou “radical” ou como associam um certo tipo de nacionalismo a “xenofobia”, como se os jornalistas fossem titulares de opiniões superiores e autoevidentes. Vejemos algumas manchetes:


.Globo: “Discurso xenófobo e fortemente nacionalista: como Giorgia Meloni chegou ao poder na Itália.” 6

.Público: “Meloni vai liderar o Governo mais à direita de que a Itália tem memória.” 7

.CNN: “Giorgia Meloni claims victory to become Italy’s most far-right prime minister since Mussolini.”8

.The Guardian: “Giorgia Meloni is a danger to Italy and the rest of Europe.”9

.New York Times: “The country’s hard turn to the right has sent shock waves across Europe after a period of stability in Italy led by Mario Draghi.”10


Ser incendiário e controverso não torna um político, intelectual ou cientista imediatamente em oposição à democracia ou a um regime liberal e representativo. Quanto muito, pode é ser fonte de alguma instabilidade. A diabolização de Meloni pela esquerda e por muitas figuras menos “soberanistas” e mais “progressistas” dentro e fora da UE deriva do facto de um desejo aparentemente irreversível de que as suas posições sejam rotuladas e classificadas como indiscutivelmente ultrapassadas, quando na verdade não o são. Lamentavelmente, muitos fiéis defensores de uma Europa federalista e mesmo alguns que receiam níveis de integração significativos dos países na UE revelam um desdém pela primazia da família natural e heterossexual, pela importância concedida à manutenção de uma taxa de natalidade acima do nível de substituição, pelo privilégio do casamento entre um homem e uma mulher, pela defesa dos direitos constitucionais e fundamentais de seres humanos em período de gestação, pela influência positiva da religião (dentro de certos limites), pela oposição a operações de mudança de sexo a menores e pela rejeição da imigração ilegal (e, muitas vezes, maciça).


É conveniente estar a par de (pelo menos) parte da realidade italiana. De 2013 a 2021, segundo dados do Ministério da Educação italiano sobre o início de cada ano letivo, 1301 escolas encerraram (13,3% das 9769 escolas em funcionamento em 2012-2013)11. No mesmo período, assitiu-se a uma diminuição do número de crianças matriculadas, como causa e como resultado do encerramento das escolas. Mais precisamente, enquanto que se registaram 631000 estudantes matriculados em 2012-2013, em 2020 já se registaram apenas 461000 (diminuição de 27%)12. No presente ano letivo (2022-2023), entrarão nas escolas italianas menos 121000 estudantes relativamente ao ano passado13. Segundo um relatório da primeira metade do ano de 2017 do Departamento Italiano de Estatística14, a população passará dos pouco mais de 60 milhões que eram em 2017 para 58,6 milhões em 2045 e, em 2065, para 53,7 milhões. Também se menciona um perda de 2,1 milhões até 2025 e de 7 milhões até 20165, tendo como base o ano de 2016. Ainda entre 2016 e 2065, está previsto um aumento da fecundidade, mais precisamente de 1,34 para 1,59 filhos por mulher, o que continua a ser um nível de fecundidade registado baixíssimo15. No mesmo período, a Itália perderá entre 600000 e 800000 habitantes por ano. Nesse último ano, o número de imigrantes situar-se-á acima dos 14 milhões (de 53,7 milhões, isto é, um quarto da população total da Itália em 2065)16. Apesar destas projeções, a crise não se encontra no futuro. Já está a acontecer: Em 2050, “60% dos italianos não terão irmãos, irmãs, primos, tios ou tias.”17


Algumas comunas italianas têm vindo a desenvolver iniciativas no sentido de concretizar “um futuro mais fértil”18, tendo como instrumento o financiamento de “famílias, escolas e despesas na educação de crianças”19 ou a promessa por parte de firmas de assegurarem bónus aos trabalhadores que tenham filhos, horários de trabalho flexíveis ou o financiamento de escolas20.


Em 2021, a Itália registou apenas 399431 nascimentos, o número mais baixo desde 1861, o ano da unificação, segundo o Departamento de Estatística italiano21. O mesmo departamento refere que a Itália poderá ter de se preparar para registar menos 50 milhões de habitantes em 2050.22


Giorgia Meloni não deve estar sozinha no que respeita à apresentação e preocupação com este problema. Vejamos esta parte do seu discurso de vitória (a tradução é pessoal)23:


Eu sou Giorgia. Sou uma mulher, sou mãe, sou italiana, sou cristã e ninguém me retirará isso. Tenho vergonha... tenho vergonha de um estado que não faz nada pelas famílias. Tenho vergonha de um Estado no qual toda a gente fala de creches gratuitas mas no qual ninguém as concretiza. O Irmãos de Itália apresentaram a proposta. Foi rejeitada.

No mesmo discurso, Meloni faz críticas pertinentes a alguns dos efeitos mais nocivos do capitalismo, críticas estas certamente incómodas a certos libertários, muitas vezes disfarçados de liberais:


Porque é que a família é um inimigo?...Porque é a nossa identidade... Portanto, eles atacam a identidade nacional, atacam a identidade religiosa, atacam a identidade de género, atacam a identidade familiar. Não me devo identificar como italiana, cristã, mulher, mãe. Não. Eu devo ser o cidadão x, o género x, o ascendente x e o ascendente y. Tenho que ser um número. Porque quando sou apenas um número, quando eu deixo de ter uma identidade e raízes, então serei a escrava perfeita dos especuladores financeiros. O consumidor perfeito.


Indubitavelmente, a ascensão de Giorgia Meloni tem sido abordada de uma forma muito reacionária. Para muitos jornalistas e mesmo muitos autoassumidos representantes dos valores europeus e das instituições europeias, a única explicação para que Meloni e outras figuras conservadoras tenham tanta popularidade é que os eleitores são ignorantes ou facilmente manipulados.

No Congresso Mundial de Famílias, a 30 de Março de 2019, Meloni já se encontrava convencida24:


“(...) queremos garantir direitos que hoje faltam. Direitos de uma mulher ser mãe sem ter que sacrificar o seu emprego. Direitos de uma mulher ser mãe e optar por não trabalhar e não passar fome. Direitos para uma mulher que tem que fazer um aborto porque não tem alternativa.


É escandaloso que a Europa não financie a questão do declínio das taxas de natalidade. Este é o maior problema para a Europa. Se não resolvermos isso, tudo o que fizermos será inútil. Se a União Europeia tem um programa Erasmus para a mobilidade social, se tem um programa Horizon de investigação científica, porque não pode ter um programa familiar de promoção da natalidade?


Poderemos discordar de alguns meios que Meloni utiliza para alcançar certos objetivos. Mas temos que aceitar que ela põe o dedo na ferida de muitos problemas que não só a Itália como muitos países desenvolvidos enfrentam. Quanto às soluções que têm vindo a ser procuradas por aqueles que se orgulham de serem os supostos guardiões da liberdade contra os nacionalistas e os soberanistas, vale a pensa referenciar as palavras de Giulio Meotti, escritas há quatro anos atrás25:


Não substituímos mais os nossos números; em vez disso, contamos com a imigração para compensar o déficit de nascimentos. Esta imigração é, em sua maiori,a muçulmana; o efeito do nosso declínio demográfico é, portanto, a islamização da Europa. A resposta da classe política, pelo menos na Itália, é dar de ombros e dizer: "E daí?". As elites europeias são multiculturalistas e parecem pensar que todos os fatos são meramente relativos. Eles também acreditam que a religião é privada e que o Estado exige que mantenhamos o mesmo nível de população de antes. A maioria dos muçulmanos, no entanto, não acredita que a religião seja privada; alguns deles estão trabalhando duro para um estado no qual a lei islâmica, a sharia, será a base legal para todos.

Enquanto defensores dos valores europeus, não podemos condenar os italianos por se terem observado ao espelho. A perda da fé, algumas oportunidades mal aproveitadas da globalização, o materialismo, o consumismo e o carreirismo são realidades a que a Europa deve estar atenta. Não devemos entregar esse trabalho exclusivamente a Meloni, a Orbán, a Trump, a Bolsonaro e a outros que estão cá para deixar um importante legado. É a vez de Meloni intervir na Europa e no mundo.


2 Ibidem

4 Ibidem

12 Ibidem

16 Ibidem

19 Ibidem

20 Ibidem

21 Ibidem

22 Ibidem


Comments


bottom of page