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A Hipocrisia Também Mata

É cómico, se não fosse trágico, assistir aos novos especialistas em direitos humanos, nos espaços alargados que lhes conferem nos canais televisivos, face às reivindicações recentes, a opor-se ao Mundial do Qatar. Sabemos que estarão na fila da frente a comentar, de fio a pavio, os jogos, e que se inserem na histeria anual dos incompreensíveis mercados de transferências.


O mais sensato era – sejamos concretos – um boicote generalizado ao Mundial por parte das Federações e dos governos. Deixemos a bola rolar: quando a imagem que passar nos ecrãs for a dos jogadores a beijar o relvado quando entrarem em capo ou a do Neymar a fazer o sinal da cruz, aí saberemos que o Deus de uns, afinal, não é o Deus dos outros. Restar-nos-á a hipocrisia.


A ida ao Qatar é no quadro do “apoio à seleção”, diz Marcelo Rebelo de Sousa, mas também com um olho no Mundial Portugal-Espanha-Ucrânia de 2030, aponta Eurico Brilhante Dias, do PS. Um misto de oportunismo e cinismo. Os portugueses não votam, numa democracia representativa, para os seus representantes defenderem valores anticonstitucionais. Estas deslocações do primeiro-ministro, do Presidente da República e do Presidente da Assembleia da República têm um valor simbólico e não podem ser encaradas como manifestações individuais de apoio.


Reina uma teimosia em perspetivar os direitos humanos, em particular os das minorias étnicas e sexuais, como instrumentos de campanhas capitalistas. É um costume tipicamente europeu. A Europa viciou-se em olhar para outro lado sempre que lhe convém: vende armas à Arábia Saudita que as usa para cometer crimes de guerra, massacrando a população civil do Iémen, e negociou com Putin quando foi conveniente, alimentando o monstro agora que nos ameaça. Os líderes europeus repetem o modus operandi com outras ditaduras porque lhes importa mais que a gasolina não suba do que as mulheres dos outros continuem submetidas a leis medievais.


Liberdade, igualdade e fraternidade são velhas prioridades de uma Europa hipócrita que se ajoelha cinicamente perante a melhor oferta. A UE procura no Qatar alternativas para compra do gás para reduzir a dependência energética da Rússia, como aplaudiu Ursula von der Leyen. Alimenta-se outros regimes, mas a lógica é a mesma, até ser aplicada a lei do retorno.


O convite que faço ao leitor é não esquecer as marcas que patrocinam este Mundial e de substituir os cânticos entusiásticos pelos gritos de morte, agora silêncios, daqueles que sofrem a negação de direitos e a exploração laboral. Pensemos na utilidade dos 195 mil milhões de euros gastos na organização do evento para a erradicação da fome. De um lado, a opulência das cerimónias, os acionistas que ganharam com a construção das infraestruturas e os hotéis luxuosos em que ficarão alojados os jogadores e os governantes em representação oficial. Do outro lado, a hipocrisia que mata. Não há neutralidade quando se trata de direitos humanos: não esqueçamos isto.

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