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As Ditaduras dos Regimentos

Serve de mote para esta reflexão uma experiência pessoal. Há um mês, numa Assembleia

Municipal no meu concelho, que decidi assistir enquanto cidadão, presenciei uma

situação caricata: as propostas de dois partidos não foram incluídas no período da votação

antes da Ordem do Dia por decisão do presidente da Assembleia. O motivo, depois

explanado pelo próprio, é que deviam ter sido enviadas com dois dias de antecedência,

conforme previa o regimento. Na verdade, tinham sido encaminhas por correio eletrónico

há mais de 48 horas, no entanto o documento era propositadamente aberto, permitindo

leituras múltiplas, interpretações erróneas e despindo-se da objetividade necessária ao

exercício pleno da democracia. Concluindo: as propostas deveriam ser enviadas até às 14

horas de sexta-feira, término da hora de expediente, sendo a Assembleia na quarta-feira.

É a “ditadura do regimento”, ouviu-se por lá num tom desgostoso.


Uma breve estória portuguesa que ilustra a tendência tecnocrata que emana dos ventos

europeus. Primeiramente, numa democracia representativa, em que se elege deputados

para a representação nos vários órgãos do poder, cada vez mais os indivíduos se inibem

de uma participação ativa, o que diminui o escrutínio dos eleitos. Nada disto surpreende,

pois a linguagem tecnocrata, impenetrável na sua erudição, desmobiliza qualquer

participação cívica. Esta, máscara da incompetência técnica de alguns cidadãos eleitos

para os cargos, obscurece os discursos, tornando-os opacos para os cidadãos.


Não nos iludamos: a linguagem dos regimentos cumpre uma estratégia discursiva e serve-

se de mecanismos linguísticos que visam conferir, aos locutores, uma posição de poder e

de prestígio social. Do outro lado, há o abutre – o populista –, que leva ao extremo a

simplificação da linguagem e o anti-intelectualismo. Nesta era de primazia do discurso

simplista, a apresentação de propostas fica relegada a um plano de menor importância, já

que as mesmas serão opacas para os cidadãos na sua transposição efetiva para a lei.

Reproduz-se, de seguida, um exemplo concreto, selecionado aleatoriamente, da prosa

jurídica de uma das recomendações emanadas pela Comissão Europeia, sobre o Programa

de Associação UE-República da Moldávia: “No que respeita à liberalização do acesso ao

mercado por parte da Moldávia, em conformidade com o anexo XV-D do Acordo de

Associação, este processo ainda será faseado em relação a alguns produtos até 2024.


Ambas as Partes devem cooperar regularmente, designadamente através das estruturas

bilaterais criadas nos termos do Acordo de Associação UE-Moldávia, bem como no

âmbito de quadros multilaterais e do intercâmbio de informações sobre qualquer aspeto

relacionado com a execução do Acordo de Associação/ZCLAA, incluindo, entre outros,

estatísticas, utilização de contingentes pautais (CP) e a aplicação efetiva do mecanismo

antievasão. A este respeito, no âmbito da liberalização adicional do acesso ao mercado

permitida ao abrigo do Acordo de Associação, as Partes congratulam-se com a decisão

do Comité de Associação UE-Moldávia na sua configuração Comércio de aumentar os

contingentes pautais e os limiares antievasão para determinados produtos agrícolas”.


A obrigatoriedade de ler e reler cinco vezes o mesmo parágrafo para daí retirar algum

sentido, retira poder ao cidadão. Se fosse uma leitura opcional, estou certo de que a

maioria das pessoas ignorá-la-ia ou, simplesmente, adotaria um olhar diagonal.

Poucos estão dispostos a perder tempo com uma escrita enfadonha, um jargão

impenetrável (“os contingentes pautais”) e um vocabulário vago, repleto de “alguns” e

“determinados”, o que retira objetividade a um texto que deveria servir de norma a todos

os países europeus. Tudo isto está relacionado com a competência linguística de quem

escreve as diretrizes, mas também com a lógica da tecnocracia neoliberal.


Ademais, a tecnocracia europeia, que se imiscuiu em Portugal nos vários órgãos

legislativos e na legislação nacional, transfere o poder para os governantes e desmobiliza

os eleitores para uma participação cívica ativa e informada, contribuindo para a eficácia

retórica do discurso antissistema utilizado pela extrema-direita, que se aproveita da

frustração e revolta. Em suma, tecnocrata e populista: duas faces da mesma moeda.

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