As Ditaduras dos Regimentos
- Miguel M. Correia
- 28 de out. de 2022
- 3 min de leitura
Serve de mote para esta reflexão uma experiência pessoal. Há um mês, numa Assembleia
Municipal no meu concelho, que decidi assistir enquanto cidadão, presenciei uma
situação caricata: as propostas de dois partidos não foram incluídas no período da votação
antes da Ordem do Dia por decisão do presidente da Assembleia. O motivo, depois
explanado pelo próprio, é que deviam ter sido enviadas com dois dias de antecedência,
conforme previa o regimento. Na verdade, tinham sido encaminhas por correio eletrónico
há mais de 48 horas, no entanto o documento era propositadamente aberto, permitindo
leituras múltiplas, interpretações erróneas e despindo-se da objetividade necessária ao
exercício pleno da democracia. Concluindo: as propostas deveriam ser enviadas até às 14
horas de sexta-feira, término da hora de expediente, sendo a Assembleia na quarta-feira.
É a “ditadura do regimento”, ouviu-se por lá num tom desgostoso.
Uma breve estória portuguesa que ilustra a tendência tecnocrata que emana dos ventos
europeus. Primeiramente, numa democracia representativa, em que se elege deputados
para a representação nos vários órgãos do poder, cada vez mais os indivíduos se inibem
de uma participação ativa, o que diminui o escrutínio dos eleitos. Nada disto surpreende,
pois a linguagem tecnocrata, impenetrável na sua erudição, desmobiliza qualquer
participação cívica. Esta, máscara da incompetência técnica de alguns cidadãos eleitos
para os cargos, obscurece os discursos, tornando-os opacos para os cidadãos.
Não nos iludamos: a linguagem dos regimentos cumpre uma estratégia discursiva e serve-
se de mecanismos linguísticos que visam conferir, aos locutores, uma posição de poder e
de prestígio social. Do outro lado, há o abutre – o populista –, que leva ao extremo a
simplificação da linguagem e o anti-intelectualismo. Nesta era de primazia do discurso
simplista, a apresentação de propostas fica relegada a um plano de menor importância, já
que as mesmas serão opacas para os cidadãos na sua transposição efetiva para a lei.
Reproduz-se, de seguida, um exemplo concreto, selecionado aleatoriamente, da prosa
jurídica de uma das recomendações emanadas pela Comissão Europeia, sobre o Programa
de Associação UE-República da Moldávia: “No que respeita à liberalização do acesso ao
mercado por parte da Moldávia, em conformidade com o anexo XV-D do Acordo de
Associação, este processo ainda será faseado em relação a alguns produtos até 2024.
Ambas as Partes devem cooperar regularmente, designadamente através das estruturas
bilaterais criadas nos termos do Acordo de Associação UE-Moldávia, bem como no
âmbito de quadros multilaterais e do intercâmbio de informações sobre qualquer aspeto
relacionado com a execução do Acordo de Associação/ZCLAA, incluindo, entre outros,
estatísticas, utilização de contingentes pautais (CP) e a aplicação efetiva do mecanismo
antievasão. A este respeito, no âmbito da liberalização adicional do acesso ao mercado
permitida ao abrigo do Acordo de Associação, as Partes congratulam-se com a decisão
do Comité de Associação UE-Moldávia na sua configuração Comércio de aumentar os
contingentes pautais e os limiares antievasão para determinados produtos agrícolas”.
A obrigatoriedade de ler e reler cinco vezes o mesmo parágrafo para daí retirar algum
sentido, retira poder ao cidadão. Se fosse uma leitura opcional, estou certo de que a
maioria das pessoas ignorá-la-ia ou, simplesmente, adotaria um olhar diagonal.
Poucos estão dispostos a perder tempo com uma escrita enfadonha, um jargão
impenetrável (“os contingentes pautais”) e um vocabulário vago, repleto de “alguns” e
“determinados”, o que retira objetividade a um texto que deveria servir de norma a todos
os países europeus. Tudo isto está relacionado com a competência linguística de quem
escreve as diretrizes, mas também com a lógica da tecnocracia neoliberal.
Ademais, a tecnocracia europeia, que se imiscuiu em Portugal nos vários órgãos
legislativos e na legislação nacional, transfere o poder para os governantes e desmobiliza
os eleitores para uma participação cívica ativa e informada, contribuindo para a eficácia
retórica do discurso antissistema utilizado pela extrema-direita, que se aproveita da
frustração e revolta. Em suma, tecnocrata e populista: duas faces da mesma moeda.
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