Castração química (e cirúrgica): os exemplos da Europa
- Lourenço Pinto Ribeiro
- 17 de mar. de 2023
- 9 min de leitura
Com o envolvimento de determinadas instituições no prolongamento ou na perpetuação do comodismo perante casos de crimes sexuais, incluindo de pedofilia, a sociedade portuguesa recordou que problemas antigos (mas existentes e bem presentes) podem suscitar as divisões mais cruas e a rápida proliferação de acusações de oportunismo, de populismo e de relativismo. Perante esta doença, que afeta maioritariamente as crianças e os jovens da actualidade, as pessoas, os agentes da sociedade civil, os nossos representantes e as nossas instituições nunca poderiam ficar indiferentes ao sofrimento que um agressor e um abusador conseguem causar aos mais novos e indefesos. Por conseguinte, importa falar de pelo menos uma medida proposta para combater o flagelo da criminalidade sexual, reconhecendo sempre que nenhuma delas sozinha constituirá por inteiro a solução ou o remédio para curar a sociedade desta desgraça.
Quanto ao aumento do prazo de prescrição de crimes de abuso de menores, aparenta haver algum consenso entre os partidos em Portugal, apoiada aliás pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica1. Contudo, a mínima sugestão de aumento de penas para estes crimes ou da introdução no Código Penal de novas medidas penais que acompanhem a tendência observada no resto do continente europeu resulta em acusações de “instrumentalização”, de demagogia e de nostalgia por uma idade das trevas. Essas acusações podem ser rebatidas com evidências relativas às trajetórias de outros países europeus quanto às suas decisões legislativas, como é o caso da medida que temos vindo a conhecer como castração química.
A castração química, igualmente conhecida como tratamento hormonal ou terapia antagonista de testosterona, é a aplicação de hormônios femininos antiandrógenos no homem, com o objetivo de inibir a produção de testosterona e, por sua vez, reduzir a sua libido2. Em vários países, alguns dos quais falaremos a seguir (salientamos o caso da Europa), a castração química é uma forma de redução da pena ou uma alternativa à prisão e o hormônio feminino mais usado no seu âmbito é o acetato de medroxiprogesterona. Os seus efeitos só se mantêm enquanto durar o tratamento, pelo que é caracteristicamente dotado de reversibilidade e temporalidade3. Intencionando combater, desencorajar e minimizar os casos de crimes sexuais que nunca deixaram de emergir nas últimas décadas, países da União Europeia como a Alemanha, a Polónia, a França e países europeus como a Grã-Bretanha, já para não falar nos Estados Unidos da América (EUA), aprovaram a castração química como aplicável nos seus respetivos ordenamentos jurídicos. Nuns Estados ela está prevista de forma facultativa, enquanto noutros é uma medida caraterizada pela obrigatoriedade4.
Países como os EUA (estados como a Flórida e o Texas), a Alemanha e a República Checa admitem, para além da castração química, a possibilidade da castração cirúrgica, também denominada de orquiectomia (remoção de um ou dois testículos) ou emasculação (remoção da genitália externa masculina)5.
Em Setembro de 2022, o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, aceitou a proposta (projeto-lei) visada à introdução no ordenamento jurídico-penal português a condenação enquanto pena acessória de castração química a quem cometer os crimes de violação ou abuso sexual de crianças em casos reincidentes ou de práticas em situações de “especial censurabilidade ou perversidade”. A versão admitida pelo presidente do parlamento português incluiu a seguinte ressalva: a castração química nunca poderia ser aplicada em casos de perigo, clinicamente verificado, para a vida do condenado. A alteração do documento foi feita para efeitos de uma conformidade com a Constituição e para assegurar o acordo do arguido enquanto condição necessária para a aplicação da castração química enquanto pena6. Assim sendo, a pena deixaria de ser aplicada sem o consentimento do arguido.
O caso português exemplifica o debate acerca da viabilidade da adoção da castração química como punição ou sanção imposta pelo Estado ou como um direito do agressor sexual a cuidados de saúde, na qual este receberia, consciente e voluntariamente, o tratamento indicado. Esta última opção aparenta sugerir um respeito pela “dignidade humana” e pela “autonomia da vontade”7. Esta posição deve estar associada à preferência por parte de alguns autores pela denominação “terapia antagonista de testosterona”, o que pode salientar o carácter voluntário (dependendo da lei em vigor), aplicado de acordo com o consentimento do indivíduo, e distinto de uma castração propriamente dita, a qual envolveria a mutilação dos órgãos8.
No resto da Europa, podemos observar exemplos de inclusão da castração química no ordenamento jurídico-penal dos respetivos países e de como a castração química já deixou de ser um tema tabu no continente europeu. Na França, a castração química foi defendida explicitamente pelo executivo depois de um criminoso sexual, após ter cumprido um terço da sua pena (18 dos 27 anos de prisão) por ter sido condenado pela prática de pedofilia, ter sequestrado e violado um menor de cinco anos de idade. Juntamente e motivado pelo choque na população francesa, o então presidente Nicolas Sarkozy defendeu e impôs medidas rígidas para os casos de abusos sexuais, entre elas a castração química e a construção de um centro de acompanhamento médico-psicológico, em Lyon, aos condenados reincidentes por crimes sexuais contra crianças e adolescentes, estando estes pacientes dependentes da avaliação médica e da implementação de um rastreador eletrónico para reingressarem na sociedade9.
A Alemanha adopta a castração física e voluntária desde 1969, revelando actualmente preferência pela castração química. Porém, o Comité Europeu para a Prevenção da Tortura e Tratamento ou Punição Desumano ou Degradante do Conselho Europeu solicitou o abandono da castração física, argumentando que, mesmo sendo pouco usada, continua a ser invasiva e irreversível10. Por seu lado, o governo alemão insistiu que a castração física não deve ser entendida enquanto punição e que permite que “o sofrimento associado a um apetite sexual anormal...seja curado ou pelo menos aliviado”. De 2002 e 2012, o número de castrações físicas de criminosos sexuais na Alemanha não alcançou os cinco anuais11.
Em 2009, a Polónia adoptou a modalidade forçada de castração química, sendo o único país europeu a admitir esta modalidade de aplicação12.
A Grã-Bretanha admite a castração química na modalidade voluntária e possui um registo nacional de abusadores de crianças13. A aplicação da castração química neste país começou com um projeto da iniciativa do Instituto de Neurociência da Universidade de Newcastle, através do qual são oferecidos medicamentos antidepressivos e inibidores da libido a pacientes voluntários, autores de crimes sexuais, especialmente reincidentes e acusados de crimes de pedofilia14.
Actualmente, a República Checa continua a admitir a castração física cirúrgica15 e também admite a modalidade facultativa da castração química16.
Outros países na Europa que, no âmbito criminal, adotam a castração química são a Bélgica, a Dinamarca, a Suécia, a Hungria e a Itália17.
Independentemente de denominações alternativas que pretendamos atribuir à castração química, esta é considerada uma medida dotada de efeitos muito próximos das da castração cirúrgica: elimina quase toda a testosterona do corpo do agressor ou acusado. Aliás, a sugestão de aplicação da castração química advém precisamente da identificação dos seus efeitos na segurança de uma comunidade18.
No que concerne à castração química (e mesmo física), pode-se considerar alguma dificuldade na imposição da obrigatoriedade da medida enquanto tratamento, nomeadamente ao nível da administração dos inibidores hormonais. Isto é, se a apresentação regular não for cumprida pelos indivíduos, pode levar os delinquentes ao aumento de produção de testosterona, provocando uma maior incidência na prática de crimes sexuais19. Por outro lado, a Hungria é um exemplo de país em que os indivíduos (fisicamente) castrados por ferimentos de guerra continuam a revelar presença de libido sexual, mesmo depois de extinta a viripotência20. Aliás, Holmes apresenta um exemplo, dentro do contexto alemão: “39 estupradores que foram castrados e liberados das prisões na Alemanha relataram que após a castração eles reduziram grandemente frequências de pensamentos sexuais, masturbação e relacionamento sexual, mas 50% dos homens relataram que ainda eram capazes de ter relação sexual”21.
Tanto a castração química como a castração cirúrgica são voluntárias na República Checa, e o sexólogo checo Petr Weiss insiste que todos os detalhes são apresentados àqueles que se submetem à castração cirúrgica. E continuou: “o modelo checo de tratamento tem muito êxito relativamente a programas de tratamento estrangeiros. E quando a castração cirúrgica “está relacionada com a psicoterapia, observa-se uma taxa de reincidência de zero por cento. Nenhum dos nossos pacientes teve uma recaída nos trinta anos passados”22. Segundo o governo checo, no período entre 1999 e 2009, 94 homens foram cirurgicamente castrados e 300 participaram no programa de castração química, que na altura já estava a ter repercussões legislativas e práticas em países como a França, a Grã-Bretanha e a Polónia23.
Tanto a castração química como a castração cirúrgica aparentam ter sido efetivas no decréscimo na taxa de reincidência entre acusados de crimes sexuais, o que contribui para a proteção da sociedade na sua generalidade. Em segundo lugar, a castração pode contribuir para proteger os acusados de encarceramentos de longo prazo ou mesmo perpétuos nos países que admitem a pena de prisão perpétua24. Quanto à castração química, podemos recordar-nos de três ressalvas: a probabilidade de os acusados de crimes sexuais não cumprirem com a devida regularidade a administração de inibidores hormonais; o facto de uma redução da frequência dos pensamentos sexuais, de masturbação e de relacionamentos sexuais não implicar uma inibição de praticar relações sexuais; é uma medida que envolve a administração de substâncias com efeitos reversíveis nos níveis hormonais daqueles que os consomem por aplicação da lei. Quanto à castração cirúrgica, esta parece (ressalvando alguns casos mencionados acima relativamente à Hungria) ser mais propícia à inibição de práticas de crime sexual futuras, como nos sugerem os dados que temos do caso checo.
Regressando ao contexto português, soubemos que todos os partidos rejeitaram a proposta do Chega para incluir na Constituição portuguesa a castração química como pena acessória para crimes de abusos sexuais. Neste sentido, o Chega pretendia a introdução de um novo artigo que se situasse fora da norma relativa ao direito à integridade pessoal (25º), que refere que “ninguém pode ser submetido à tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos”, as penas que “digam respeito a tratamentos químicos que se considerem necessários para a prevenção de crimes de natureza sexual”25. Durante a rejeição em contexto parlamentar, assistimos às reações costumeiras de quem pretende isolar um partido que é sóbrio o suficiente para não entender que a classificação de Portugal como um dos países mais seguros do mundo é desculpa para não ponderarmos sobre a pertinência da aplicabilidade em Portugal de medidas penais de que até países da União Europeia não conseguem abdicar. A deputada do PS Alexandra Leitão considerou que não pode haver exepções em matérias que violam a dignidade humana. Alma Rivera, deputada do PCP, revelou “repúdio” por uma “pena cruel, desumana e degradante”. A deputada do PAN, Inês Sousa Real, classificou a proposta como “um retrocesso dos direitos humanos”26. Na verdade, o tom utilizado por estes deputados coincide com muitos daqueles que se orgulham de fazer um cordão sanitário àqueles que apontam o dedo aos que têm vindo a dizer que respeitar a dignidade da pessoal humana não é expressar repugnância diante de medidas que têm demonstrado efeitos na diminuição da reincidência penal, especialmente no que concerne a crimes que tanto têm afligido as sociedades europeias. O que responder quando nos acusam de populismo ou de não respeitar a dignidade da pessoa humana? O que fazer diante de acusações que nos obrigam a escolher entre o endurecimento penal ou a adição de penas ou medidas alternativas ou complementares e o respeito por definições algo distorcidas de humanismo? Dignidade humana é assegurar às possíveis vítimas de crimes sexuais de que pedófilos, violadores e outros criminosos sexuais de que a liberdade é a única coisa de que serão privados se forem apanhados a cometerem um crime hediondo e decisivamente danoso da liberdade e integridade mental e física dos inocentes e mais frágeis? A existência do encarceramento como única alternativa à permanência e à impunidade de criminosos de determinada severidade é algo a ser protegido a todo o custo? Algo mais não será necessário? Todos os dias, países mais próximos como a Alemanha, a República Checa e a Polónia e países mais distantes como os EUA e o Canadá respondem a questões como estas a vários relativistas disfarçados de humanistas. Cá em Portugal, um partido na Assembleia da República também o faz com uma exaustante, mas mais que compreensível regularidade. E não devem ser condenados por isso.
2 Paz, Bárbara Bisogno, A Castração Química como Forma de Punição Para os Criminosos Sexuais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, págs. 1-2
3 Rodrigues das Neves, Maria Clara Yulie (2019), Estudo sobre a Universalidade da Catração Química, Suas Realidades e Implicações no Mundo Jurídico, Universidade Presbiteriana Mackenzie, pág. 21
4 Paz, Bárbara Bisogno, A Castração Química como Forma de Punição Para os Criminosos Sexuais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, pág. 2
5 Rodrigues das Neves, Maria Clara Yulie (2019), Estudo da Universalidade da Castração Química, Suas Realidades e Implicações no Mundo Jurídico, Universidade Presbiteriana Mackenzie, pág. 17
7 Paz, Bárbara Bisogno, A Castração Química como Forma de Punição Para os Criminosos Sexuais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, pág. 2
8 Ibidem, pág. 4
9 Ibidem, págs. 8-9
10 Rodrigues das Neves, Maria Clara Yulie (2019), Estudo da Universalidade da Castração Química, Suas Realidades e Implicações no Mundo Jurídico, Universidade Presbiteriana Mackenzie, pág. 42
12 Rodrigues das Neves, Maria Clara Yulie (2019), Estudo da Universalidade da Castração Química, Suas Realidades e Implicações no Mundo Jurídico, Universidade Presbiteriana Mackenzie, pág. 22
13 Paz, Bárbara Bisogno, A Castração Química como Forma de Punição Para os Criminosos Sexuais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, pág. 8
14 Ibidem
15 Rodrigues das Neves, Maria Clara Yulie (2019), Estudo da Universalidade da Castração Química, Suas Realidades e Implicações no Mundo Jurídico, Universidade Presbiteriana Mackenzie, pág. 18
16 Ibidem, pág. 22
17 Ibidem
19 Paz, Bárbara Bisogno, A Castração Química como Forma de Punição Para os Criminosos Sexuais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, pág. 13
20 Ibidem, pág. 14
21 Ibidem
23 Ibidem
26 Ibidem
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